domingo, 30 de março de 2008

A alegria de aprender

Localizado no Bairro Belo Vista, em Palhoça, o Centro Educacional Dom Jayme de Barros Câmara oferece muito mais do que uma alternativa para tirar crianças de situação de trabalho precoce.


Oito e meia da manhã, e as nove meninas já estão prontas para ensaiar. A coreografia com música de Wanessa Camargo foi escolhida democraticamente por todas as alunas, assim como o figurino que usarão na Noite da Dança, evento que acontece todo final de ano no Centro Educacional Dom Jayme de Barros Câmara. As paredes pintadas de rosa, um enorme espelho ao fundo e algumas fotos com apresentações de anos anteriores decoram a sala de pouco mais de trinta metros quadrados, onde as pré-adolescentes de dez e onze anos se esbarram tentando acertar o passo. No meio do grupo se esconde uma garota morena, pés descalços, calça e mini-blusa marinho, umbigo à mostra. Seu nome é Joice da Silva Fortes.

Joice é uma das 260 crianças atendidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) no Centro Educacional Dom Jayme. Ela recebe uma bolsa de R$ 40 por mês para freqüentar o Programa Jornada Ampliada no período em que não está na escola. Ali, a menina de 11 anos participa de atividades culturais, esportivas e recreativas, recebe reforço escolar, café da manhã e almoço - aliás, de cardápio aprovado. "Às vezes tem até sobremesa", elogia. Com uma população total de duas mil pessoas, incluindo funcionários e professores, o Dom Jayme tem uma grande estrutura.

Funcionando como um complexo pedagógico e assistencial, a instituição não atende apenas crianças e adolescentes retirados de situações de trabalho precoce e encaminhados para o Peti. Ao todo são quase 800 jovens entre seis e 15 anos que têm a oportunidade de desenvolver suas habilidades, aprender a conviver socialmente, preencher seu tempo e crescer com um pouco mais de dignidade. "Aqui eles aprendem também a ter disciplina, horários e responsabilidade", acrescenta Rose Varella, técnica-pedagógica do Centro.

Às dez da manhã Joice e as colegas saem ansiosas para a próxima atividade. Antes, devem passar na casinha para deixar as mochilas. Casinha é o apelido carinhoso dado às unidades-referência, local que funciona como ponto de apoio ao atendimento das crianças de até 12 anos. Para que não se sintam perdidas no Centro, elas são agrupadas por idade em nove dessas unidades, onde recebem aulas de reforço escolar e orientação das donas, como são chamadas as coordenadoras de cada unidade, que as encaminham para as atividades desenvolvidas longe da sua base. O local possui ainda uma sala com almofadas, televisão e vídeo para as crianças assistirem a filmes e programas infantis. Contudo, as atividades mais agitadas ainda são preferência. "Televisão me dói a cabeça, eu gosto mesmo é da dança e da recreação", assinala Joice.

Largadas as mochilas, as meninas correm para o campo gramado onde o professor de recreação as espera. Pelos caminhos de seu grande campus educacional elas vão indicando os locais: "Ali é o refeitório onde a gente toma café e almoça"; "lá no fundo, depois do campo de futebol, é a sala de canto e violão"; "aquele prédio é o Posto de Saúde que atende a gente aqui da Palhoça", apontam, falando quase em coro.

Tae-kwon-do, judô, ginástica rítmica, vôlei, futebol, basquete, dança, canto, pintura, bordado, arte com conchas, informática, violão, atletismo, recreação. O instituto oferece um leque de atividades na tentativa de abranger todos os gostos e talentos. Joice escolheu dançar por causa de um sonho: a menina do Bairro Brejaru, um dos mais carentes da região, deseja ser professora de dança. Mas também freqüenta as aulas de canto e ginástica, além do reforço pedagógico que é obrigatório. Duas vezes por semana as crianças e jovens do Programa de Jornada Ampliada devem freqüentar as aulas de português e matemática. Nos outros horários, cada um faz o seu cronograma.

- A gente deixa aberto para eles escolherem as atividades com as quais mais se identifiquem - justifica Rose.

A atividade proposta pelo professor de recreação e vôlei de areia não agrada muito e Joice, Beatriz, Tauiná, Pamela e as colegas fazem de tudo para tentar convencê-lo a deixá-las fazer o que mais gostam: pular elástico. O professor parece já acostumado às negociações e acaba cedendo, fazendo a alegria da turminha que se apressa para pegar o elástico. As nove garotas passam, então, o resto da manhã à sombra de uma enorme árvore cantando e pulando.



Adolescentes recebem preparo para o mundo do trabalho

Agora, em 2008, quando fizer 12 anos, a menina Joice não freqüentará mais as casinhas. Isso porque, depois dessa idade, os adolescentes são atendidos pelo Projeto Adolescente Consciente (Proac) e passam a ser reunidos de acordo com a série escolar, em outro prédio da instituição. Os alunos do Proac que ainda estão nas primeiras séries do ensino fundamental recebem atenção especial, com aulas três vezes por semana, sempre em turno alternativo ao da escola. Os de quinta a oitava série freqüentam aulas duas vezes por semana.

- Nós procuramos preencher lacunas que foram deixadas para trás e potencializar a construção do conhecimento - explica a pedagoga e professora de matemática, Jerusa Aparecida da Silva.

Os jovens do Proac também cursam pré-oficinas que oferecem uma introdução de algumas atividades profissionalizantes. São as pré-oficinas de confeitaria, pintura, biscuit, bordado, macramê, onde Joice e os colegas poderão aprender não apenas uma profissão, mas também posturas profissionais que deverão ter quando ingressarem no mercado de trabalho, na idade adequada.

- Em vez de ficarem ociosos em casa ou na rua, estão aqui aprendendo tudo isso - empolga-se Samira Pini, coordenadora do Dom Jayme.

A partir dos 15 anos, esses jovens podem participar das oficinas profissionalizantes. Os cursos são abertos a qualquer pessoa da comunidade, sem limite de idade. O único pré-requisito é a condição socioeconômica.

- Devem ser pessoas com dificuldades de empregar-se e com baixa renda - diz Samira.

Algumas oficinas, como a de costura industrial, exigem também uma escolaridade mínima, pois os alunos lidam com números e metragens. Ao todo, a instituição oferece cinco oficinas, com duração de dois meses a um ano: lanternagem, gráfica, informática, costura industrial e padaria.

Ao final da manhã a turma é encaminha para o almoço e, logo após, o ônibus da prefeitura transporta todos até seus respectivos colégios. Para a coordenadora do Dom Jayme, o apoio que o Centro fornece hoje se tornou essencial para o bom andamento de programas como o Peti.

- Sem esse programa que dá todo o suporte às crianças e famílias, com almoço, transporte, profissionais especializados, eu não sei nem o que seria deles - afirma.

E quem disse que o trabalho, as ruas ou as drogas são mais atraentes do que o estudo e a possibilidade de ter um projeto de vida? Difícil é encontrar algo que desagrade às crianças. Quando questionadas sobre o que não gostam no centro, a resposta vem em coro: "Nada!".

Lisandra Nascimento

domingo, 23 de março de 2008

Trabalho doméstico não é coisa de criança

Cozinhar, lavar e passar roupa, varrer a casa, enfim, é assim que uma faxineira, diarista ou mesmo uma dona-de-casa enfrentam o dia-a-dia: desempenhando tarefas que visam manter o ambiente doméstico limpo e organizado. Tarefas estas que, por mais que pareçam simples, ao serem designadas a uma criança, podem ser consideradas como uma ocupação inviável e contra a lei.

Não é de hoje que existe trabalho infantil doméstico. Desde o tempo da escravidão, já era considerada apta ao trabalho toda criança que completasse 12 anos de idade. Mesmo com a abolição, os meninos eram levados por fazendeiros e artesãos para prestarem serviços. Já as meninas serviam, na maioria, como empregadas domésticas, e, em muitos casos, sem qualquer remuneração.

O trabalho infantil doméstico sempre foi considerado como algo habitual. As crianças de classes mais baixas deveriam ajudar os pais nos afazeres domésticos. Ainda há uma expectativa de compensação ou ajuda econômica por parte dos filhos, que muitas vezes não sabem distinguir tarefas básicas de uma casa e afazeres obrigatórios a serem desempenhados por adultos. Sobreposto a tudo isso, há um aspecto cultural que, mesmo nos dias de hoje, valoriza o trabalho infantil como forma de educar a criança para a vida profissional a fim de obter responsabilidades e afastá-la da desocupação e da criminalidade.

Dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) apontam que, aproximadamente, uma em cada 10 crianças entre 10 e 14 anos trabalha no Brasil. Um índice que nos coloca entre os três países que mais consente o trabalho infantil na América Latina.

Em casas de terceiros, ou mesmo em suas próprias casas, a criança ou adolescente submetido ao trabalho corre diversos riscos que podem não parecer graves, mas que com o passar do tempo afetam não somente o presente, mas o futuro desses jovens. Esse gênero de trabalho contribui menos para a experiência dos jovens que as outras formas de fixação no mercado de trabalho. Por se realizar no domínio residencial, onde não é possível uma fiscalização ordenada, ele exibe o trabalhador a uma série de injustiças, desde a baixa ou nenhuma remuneração, até as mais críticas, que envolvem abusos sexuais e atos de violência.

- Longas jornadas de trabalho, contato com substâncias perigosas e insalubres acarretam em acidentes que, além de prejudicar o exercício de convivência familiar, afetam a liberdade de locomoção e do desenvolvimento dos estudos desses jovens - explica a Procuradora do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil, Liane Vaz Daniel.

A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001 mostra que o trabalho infanto-juvenil doméstico é realizado, geralmente, por meninas pobres (93%) e de raça negra (61%). É um tipo de atividade socialmente aceita por maquiar a inclusão das crianças no mercado em um espaço “do lar” considerado mais digno. Além disso, qualifica para as tarefas domésticas e lhes dá chance de “melhorar de vida”, ou de simplesmente obter autonomia financeira.

A Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) relata que em nosso país existem cerca de 490 mil trabalhadores com idade entre cinco e 16 anos e que quase metade desses jovens nasceram em famílias com renda inferior a um salário mínimo. Segundo pesquisas do IBGE, de 1999, cerca de 30% são de famílias cujos pais não possuem nenhum ano de escolaridade. Portanto, a falta de educação e a baixa renda dos pais é fator proeminente na disposição do indivíduo iniciar, prematuramente, sua admissão no mercado de trabalho.

Tais fatores fazem a sociedade e o governo se motivarem a combater o trabalho infantil no Brasil, não somente o doméstico, mas também as outras formas, como o trabalho rural, o urbano, o tráfico e a prostituição infantil. Para tentar resolver esse problema, foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que apóia crianças envolvidas nas mais degradantes formas de trabalho infantil. Além de passarem a freqüentar a chamada Jornada Ampliada, as crianças de 6 a 15 anos recebem ajuda mensal quando a renda per capita da família não ultrapassa meio salário mínimo. Com o apoio dessa bolsa, o jovem recebe R$ 25 nas zonas rurais e R$ 40 nos centros urbanos. O melhor de tudo é que o programa determina que a criança esteja na escola para receber o apoio do governo.

O PETI ajuda a eliminar o trabalho infantil de forma que inúmeras famílias mandem suas crianças e adolescentes para a escola e não ao trabalho. O apoio econômico tem como principal objetivo garantir a subsistência da família e fazer com que os pais e mesmo os filhos desistam da renda patrocinada pela exploração de menores.

Muitos são os exemplos de jovens como estes que recebem a bolsa do PETI, como a menina Gisele Maria Pereira, 13 anos, da sétima série. Ela freqüenta as atividades do Centro Educacional Dom Jayme Câmara, em Palhoça, e manifesta, com ingênua sinceridade, que lava a louça, passa roupa e limpa toda a casa sozinha e não se sente explorada, pelo contrário, acha sua lida em casa natural. “Se não estivesse aqui, estaria em casa ajudando a minha mãe”, admite Gisele.

Ela está no Dom Jayme desde os seis anos de idade. Quando completou 12 anos, começou a freqüentar diariamente o Programa Adolescente Consciente (Proac). O Proac é a segunda fase da Jornada Ampliada, que dá aulas de reforço de português e matemática, e inclui os jovens em esportes e pré-oficinas - confeitaria, pintura, biscuit, bordado, macramê, artes em conchas – além, claro, de freqüentarem a escola.

Carmine Cruz