terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Revelação

Sabe-se lá em que momento ou por que mecanismo psicológico uma causa social passa a ser o que move um indivíduo como animal político. Por que alguns militam contra a extinção de espécies da fauna, muitos dedicam a vida aos idosos, outros tantos se organizam em defesa das tartarugas marinhas e outros, ainda, adotam como se fossem suas as legiões de meninas prostituídas? Por que somos mais indiferentes a determinadas injustiças condenadas de forma tão universal quanto outras? Em que instante nosso comprometimento com determinada causa deixa de ser mera retórica para se tornar paixão? Claro que a implicação individual torna o problema muito mais verdadeiro, mas não explica o momento em que o eu explode suas paredes para se importar com o tu. Todo ser humano é capaz de se sensibilizar e se mobilizar por uma causa que não necessariamente o afeta em particular. Mas então, o que explica o fato de tolerarmos certas tragédias coletivas mais do que outras igualmente trágicas? Talvez os psicólogos tenham respostas mais precisas.

Em meados de setembro de 2007, o drama do trabalho infantil era uma problemática social forte, mas ainda abstrata e distante para os 15 alunos da terceira fase de redação do Curso de Jornalismo da Unisul. Até chegarmos ao Centro Educacional Dom Jayme Câmara, para dar início a mais um Projeto de Vivência do jornal-laboratório Fato & Versão, tratava-se de uma tragédia social sobre a qual precisávamos nos informar. Entrevistamos especialistas, pesquisamos, discutimos, enfim. Nos preparamos, mas sem nos deixar tocar de verdade, como uma razão que não chega a percorrer as veias. Parece que a pauta só adquiriu um sentido real quando fomos apresentados aos meninos e meninas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Sentados ao seu lado, assistimos a um vídeo – na verdade uma seqüência de cenas de crianças submetidas a trabalho escravo e semi-escravo embaladas pela batida dolorosa de uma música clássica.

A assistente social da Procuradoria Regional do Trabalho, Liane Maria Vaz Daniel, responsável pela palestra de abertura, atrasou-se com a reprodução dos documentos que pretendia entregar aos repórteres, e o encontro acabou iniciando de forma meio desorganizada. Mas acertou na estratégia de recorrer primeiro às imagens para atrair a platéia ainda insegura e tímida diante da complexidade do tema. Uma a uma as cenas foram se seguindo, mudas, nuas. Silenciosamente gritantes, pertinentes e renitentes aguilhoaram os olhares dispersos. Crianças em fábricas, presas a movimentos repetitivos e mecânicos; crianças esmagando a infância na catação de lixo; crianças na lavoura, arcando a espinha dorsal com os golpes de enxada sobre a terra, que, como tudo para elas, passa a ser signo de trabalho; crianças prostituídas ou reféns do tráfico de drogas.



Como nas brincadeiras de criança, a realidade do centro educacional se revelou aos jovens repórteres


E os corações se abriram

Ao final do filme, quando Liane, presidente do Fórum contra a Exploração Sexual Infantil, Eliane Roque e a diretora pedagógica do Centro, Samira Pini, deram início às exposições, já tínhamos marcado no corpo o choque da realidade que supúnhamos em nossa vã razão. Tudo pareceu então fazer o sentido da experiência. Acredito que só neste momento produzimos uma consciência viva sobre o objeto de nossas reportagens. Após três visitas ao Centro Educacional, as pequenas fontes tinham identidade, história e lugar no nosso afeto. E o que era para ser um jornal monotemático, focado em uma questão social impactante, mas sem um significado real, tornou-se expressão das marcas profundas que a vivência com as crianças, adolescentes e funcionários do Centro Educacional deixou em nossos alunos.

O trabalho infantil escraviza, maltrata o corpo, sobrecarrega a coluna e os ossos, supertensiona membros muito jovens, facilita o abuso sexual e a prostituição, expõe ao tráfico de drogas e à criminalidade e, principalmente, corrompe a infância, porque rouba de suas vítimas o gosto pelo lúdico. Essa afirmação só foi bem compreendida com o peso do testemunho de garoto que vende balas em sinaleiras: “Trabalho porque não gosto de brincar”, justificou ele. É isso que o trabalho remunerado faz de mais cruel: onde o dinheiro entra em jogo precoce, a infância é condenada pela sua inutilidade. E a brincadeira, modo de representação e fabulação da realidade, essencial para a elaboração dos sentimentos, para ensinar a lidar com situações difíceis, enfim, para a formação do caráter e da visão de mundo, descarta-se como nula.

A tarefa do PETI é tão gigante quanto o tamanho do problema: devolver a esses seres em desenvolvimento o prazer de brincar. Por vezes recorre ao próprio trabalho cooperativo para lutar contra o “senhor dos anéis”, mas se vale de outras estratégias de sedução, como a arte, o esporte e o conhecimento, que concorrem para restabelecer o lúdico e a grandeza da infância.

Resultados

O resultado da vivência desses 15 futuros jornalistas, que os alunos Saraga Schiestl e Samuel Nunes apresentam em formato eletrônico neste blog, em um trabalho de férias, orientou-se por dois enfoques: diagnóstico e valorização das proposições. Organiza-se como um dossiê, que discute, junto a especialistas, as implicações jurídicas, psicológicas, médicas, pedagógicas e sociológicas do trabalho precoce. Enfoca as principais formas de trabalho infantil, que são o doméstico, urbano, rural, tráfico de drogas e exploração sexual. Contextualiza o problema na história, no Brasil e em Palhoça, onde se situa o Dom Jayme Câmara. Acompanha a rotina das crianças e adolescentes inscritas no PETI, mostrando as atividades que desenvolvem. Por fim, apresenta as ações desenvolvidas pelo poder público, universidades e organizações não governamentais para combater a exploração de crianças.

A despeito das limitações de um trabalho acadêmico, feito no conjunto de atividades escolares do semestre, e muitas vezes sem a infra-estrutura adequada, o material diferencia-se pela valorização das histórias de vida, pelas narrativas dessas crianças que fazem deste não um jornalismo de fatos, ou de coisas, mas de seres, como propunha o jornalista Marcos Faermann. É uma primeira contribuição a essa causa - agora também nossa - e uma pequena retribuição a tudo que nos revelaram e ensinaram com seu talento, coragem e fome de viver.

Raquel Wandelli
Professora de Redação III
Coordenadora do Projeto Jornal-laboratório Fato & Versão
Integrante do Programa Hipermídia Aplicada

Um comentário:

Anônimo disse...

parabéns!
Bacana iniciativa do exercício. Na busca pelo espaço é que nos encontramos como profissionais.
parabéns!